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Quarta Online - Habilitar ou não o crédito - Efeitos da novação

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Em 15 de setembro de 2021, o TMA Brasil promoveu encontro virtual para estimular o debate acerca do recente posicionamento firmado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do RESP 1.851.692/RS. Após a introdução do tema pela moderadora Dra. Milena Sales, a Dra. Hayna Bittencourt leu a Ementa do julgado objeto de discussão, que segue transcrita a seguir:

 

RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. CRÉDITO CONCURSAL. NECESSIDADE DE HABILITAÇÃO DO CRÉDITO NO QUADRO GERAL DE CREDORES DA SOCIEDADE EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. FACULDADE DO CREDOR PRETERIDO. 1. O titular do crédito que for voluntariamente excluído do plano recuperacional, detém a prerrogativa de decidir entre habilitar o seu crédito ou promover a execução individual após finda a recuperação. 2. De fato, se a obrigação não for abrangida pelo acordo recuperacional, ficando suprimida do plano, não haverá falar em novação, excluindo-se o crédito da recuperação, o qual, por conseguinte, poderá ser satisfeito pelas vias ordinárias (execução ou cumprimento de sentença). 3. Caso o credor excluído tenha optado pela execução individual, ficará obrigado a aguardar o encerramento da recuperação judicial e assumir as consequências jurídicas (processuais e materiais) de sua escolha para só então dar prosseguimento ao feito, em consonância com o procedimento estabelecido pelo CPC. 4. Na hipótese, tendo o credor sido excluído do plano recuperacional e optado por prosseguir com o processo executivo, não poderá ser ele obrigado a habilitar o seu crédito. 5. Recurso especial provido.

 

Iniciado o debate, a Dra. Adriana Dias citou o art. 49 da Lei nº 11.101/05 (“LRF”), o qual dispõe que “[e]stão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos”. Ressaltou que tal definição gera insegurança em diversas hipóteses, como nos casos em que há créditos decorrentes de responsabilidade civil e demais situações cujo surgimento do crédito se dá em momento incerto.

 

Se debruçando sobre o tema, a Dra. Adriana concluiu que a relação obrigacional passa a existir no momento em que surte o primeiro efeito jurídico. Ou seja, independe de liquidez, exigibilidade ou inadimplemento. Assim que surge o mínimo vínculo obrigacional, existe o crédito. No entanto, por muito tempo, os estudiosos do Direito se questionavam: quando nasce o crédito? Na propositura da ação? No momento em que é proferida a sentença? Quando ocorreu o fato que gerou o direito de ação? Nasce no inadimplemento?

 

Após anos de debates, em 2020, foi julgado o Recurso Repetitivo 1.051 do STJ, que firmou entendimento no sentido de que a sujeição do crédito está relacionada à ocorrência do fato gerador, o que gerou uma previsibilidade outrora inexistente. Todavia, após o julgamento do RESP 1.851.692/RS, surgiram dúvidas sobre como a questão envolvendo a sujeição do crédito será tratada no futuro.

 

Passada a palavra ao Prof. Márcio Guimarães, foi-lhe indagado pela Dra. Milena quais princípios e valores prestigiados pela Lei de Recuperação e Falência merecem ser destacados em relação à matéria em discussão. A esse respeito, ponderou que, no sistema de insolvência – já no tocante ao processo de reestruturação –, são dois os pontos de atenção: clareza, que está ligada à transparência, e o equilíbrio. Assim, o juiz, o Ministério Público e o Administrador Judicial possuem duas funções primordiais: equilibrar os interesses entre devedor e credores, bem como dar o máximo de informação às pessoas envolvidas, para que, em um ambiente de simetria informacional, possam decidir bem, isto é, de forma equilibrada.

 

Quanto ao RESP 1.851.692/RS, o Prof. Márcio ponderou que essa questão ainda está sujeita à análise pela Segunda Seção, mas traz preocupação quanto ao seguinte ponto: qual o incentivo aos credores que não são listados pelo devedor para que se habilitem? Parece mais vantajoso que permaneçam na inércia, uma vez que, ao final do processo recuperacional, receberão seus créditos de forma integral e não estarão submetidos às condições de pagamento estabelecidas no Plano. Na opinião do Prof. Márcio, isso viola a própria lógica do sistema de reestruturação, criando um tratamento desiquilibrado entre os credores. Segundo ele, transparência, clareza e equilíbrio são os princípios que devem reger todo o sistema de insolvência, seja na falência, na recuperação judicial, ou na extrajudicial.

 

Complementando o Prof. Márcio, a Dra. Renata Oliveira consignou que estes princípios estão bastante presentes diante das alterações e inclusões promovidas na LRF pela Lei nº 14.112/20, de modo que há ênfase na necessidade de disponibilização das informações nos autos. A título exemplificativo, cita os seguintes dispositivos:

 

* Petição inicial e documentos – art. 51, LRF:

 

Ao ajuizar o pedido de Recuperação Judicial, o devedor prestará informações acerca da crise pela qual está passando e trará os documentos pertinentes para que os interessados e o Poder Judiciário tenham conhecimento sobre seu passivo. Nesse dispositivo, há uma novidade: o devedor também precisa descrever as sociedades de fato e de direito que pertencem ao seu grupo (LRF, art. 51, II, e).

 

Além disso, sempre foi exigido pela lei a juntada da relação de credores abarcando os credores concursais. Outra novidade é a necessidade de que seja apresentada a relação completa dos credores não sujeitos também (LRF, art. 51, III).

 

Outrossim, a antiga redação do art. 51, IX da LRF dispunha que deveria ser anexada à exordial a relação de ações judiciais em que o devedor figurasse como parte. Hoje em dia, há previsão específica determinando que procedimentos arbitrais também devem ser revelados. Mais do que isso, é preciso dar detalhe acerca dos valores demandados – trata-se de elemento relevante para os credores obterem mais detalhes sobre o endividamento do devedor, posto que, através disso, é possível identificar quais são as demandas de créditos ilíquidos que, futuramente, poderão se tornar líquidos e serão pagos nos termos do Plano.

 

Outro ponto que foi modificado refere-se à apresentação da relação dos bens e direitos integrantes do ativo não circulante, que agora deve incluir também os créditos extraconcursais (LRF, art. 51, XI).

 

Diante das alterações supracitadas, qualquer player envolvido na Recuperação Judicial conseguirá ver quais são os créditos sujeitos, os não sujeitos, os ilíquidos que eventualmente irão aparecer no curso do processo recuperacional, etc.

 

* Constatação prévia – art. 51-A, LRF:

 

Embora já fosse uma prática comum em alguns Tribunais, muitas vezes chamada de perícia prévia, antes não era positivada. Após a reforma da Lei, por sua vez, a constatação prévia foi positivada no art. 51-A. Através dessa medida, são averiguadas as reais condições de funcionamento da empresa que ingressou com o pedido de Recuperação Judicial, se a documentação apresentada está completa e se está regular. Com isso, o juiz terá condições de determinar eventual emenda à inicial ou indeferi-la, caso verificado que o pedido é fraudulento.

 

* Deferimento do processamento da Recuperação Judicial – art. 52, V, LRF:

 

A redação antiga do inciso V do art. 52 dispunha que o juiz deveria ordenar a intimação eletrônica do Ministério Público e das Fazendas Públicas para que fossem informados quanto à Recuperação Judicial. A Lei 14.112/20 acrescentou que, além disso, as Fazendas Públicas deveriam informar eventuais créditos perante o devedor, para divulgação aos demais interessados. Sobre isso, nota-se que até o Fisco tem uma participação no dever à informação.

 

* Atribuições do Administrador Judicial – art. 22, LRF:

 

Além das atribuições que competiam ao Administrador Judicial antes da entrada em vigor da Lei 14.112/20, passou a ser sua tarefa (i) fiscalizar a veracidade das informações prestadas pelo devedor para fins de elaboração do relatório mensal de atividades e (ii) fiscalizar as negociações entre devedores e credores, assegurando que não tenham expedientes dilatórios e prejudiciais.

 

Tais alterações da Lei corroboram com a necessidade de uma maior transparência, acesso às informações e clareza, para que todos possam tomar decisões acertadas em relação ao Plano de Recuperação Judicial e ao futuro da empresa em recuperação judicial.

 

Após as ponderações da Dra. Renata, a Dra. Hayna colocou o seguinte ponto para reflexão: considerando a última Recomendação do CNJ, que uniformizou os documentos para instrução da inicial, talvez o benefício da inércia do credor não seja um impulso para a Recuperanda ser ainda mais criteriosa na elaboração da sua relação de credores?

 

Quanto a isso, a Dra. Renata ressaltou que, embora seja este um bom ponto, tal posicionamento traz consequências jurídicas não apenas para o devedor, mas para os demais credores que foram diligentes.

 

Por sua vez, a Dra. Adriana acredita que talvez os credores detentores de créditos mais elevados acabem se vendo forçados a buscarem demais credores que tenham sido omitidos e que podem acabar onerando as empresas posteriormente. Isto porque, somente assim esses grandes credores saberão a verdadeira situação da devedora e se ela conseguirá arcar com o pagamento de seus créditos.

 

Em contraponto, o Prof. Márcio aduziu que não se pode sancionar o devedor por não ter listado determinador credores, eis que essa seria uma forma de prejudicar a todos.

 

A Dra. Adriana, por sua vez, mencionou que a consequência de não listar os créditos sujeitos é que a recuperação judicial tem pouca chance de prosperar, já que nãos será dado tratamento ao real passivo da empresa. A não inclusão de um crédito submetido é algo ruim, já a incerteza sobre a sujeição é o pior dos cenários.

 

Em adição, o Dr. Márcio frisou que podem ser imputadas ao devedor as sanções previstas nos art. 168, 171 e 22 da LRF:

 

Art. 171. Sonegar ou omitir informações ou prestar informações falsas no processo de falência, de recuperação judicial ou de recuperação extrajudicial, com o fim de induzir a erro o juiz, o Ministério Público, os credores, a assembléia-geral de credores, o Comitê ou o administrador judicial:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

 

 

Art. 168. Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial, ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem.

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

 

A Dra. Renata também acrescentou a sanção imposta pelo art. 64 da LRF, qual seja, a possibilidade de destituição do administrador caso incorra nas condutas previstas do caput, em específico as mencionadas abaixo:

 

Art. 64. Durante o procedimento de recuperação judicial, o devedor ou seus administradores serão mantidos na condução da atividade empresarial, sob fiscalização do Comitê, se houver, e do administrador judicial, salvo se qualquer deles:

 

IV – houver praticado qualquer das seguintes condutas:

 

d) simular ou omitir créditos ao apresentar a relação de que trata o inciso III do caput do art. 51 desta Lei, sem relevante razão de direito ou amparo de decisão judicial;

 

V – negar-se a prestar informações solicitadas pelo administrador judicial ou pelos demais membros do Comitê;

 

Parágrafo único. Verificada qualquer das hipóteses do caput deste artigo, o juiz destituirá o administrador, que será substituído na forma prevista nos atos constitutivos do devedor ou do plano de recuperação judicial

 

Seguiu argumentando que, em sua visão, o posicionamento firmado pelo REsp 1852692/RS traz muita insegurança jurídica, não só no tocante ao credor, mas também ao financiador (parceiro contratual do devedor). Ressalta que, se não houver certeza acerca de que os créditos ilíquidos poderão ser cobrados na forma do Plano, é possível que o player que estava disposto a manter uma relação contratual com a Recuperanda ou conceder-lhe novo recurso financeiro não mais o queira (ausência de overview – aumento do risco). Nesse sentido, tal insegurança jurídica é preocupante para qualquer um dos envolvidos da recuperação judicial.

 

A Dra. Milena direcionou a Prof. Márcio a seguinte pergunta: habilitar deve ser visto como um dever ou uma faculdade para o devedor?

 

Quanto a isso, o professor respondeu que, caso o devedor não habilite os créditos devidos, incorrerá em dois ônus: (i) falta de credibilidade perante o restante da sociedade e, principalmente, dos envolvidos no processo de Recuperação Judicial que estão acompanhando de perto tentativa de soerguimento da empresa; e (ii) enfraquecimento da possibilidade de obtenção de investimentos (DIP Financing), diante do cenário de incerteza. Outrossim, afirma que há obrigação do devedor em listar todos os créditos, como previsto expressamente no art. 51 da LRF. Ou seja, de forma alguma seria uma faculdade do devedor.

 

Complementando a fala do Prof. Márcio, a Dra. Renata relembrou que o pagamento de credores sujeitos à Recuperação Judicial nos termos do plano nada mais é do que simples observância ao princípio da igualdade. Na mesma linha foi o entendimento da Dra. Adriana. Ainda, a Dra. Hayna fez um paralelo com sua fala anterior, mencionando que permitir a não habilitação do credor significa beneficiar sua inércia.

 

Quanto ao tema em questão, a Dra. Renata mencionou o REsp 1.906.680/RS, no qual, em sede de Embargos de Declaração, foi proferida decisão monocrática pelo Min. Paulo de Tarso Sanseverino especificando ser permitido ao credor a cobrança do crédito, pelo valor integral, após o encerramento do processo recuperacional. Confira-se trecho da r. decisão monocrática:

 

“Quanto ao momento em que a execução deva retomar seu curso, não há omissão na decisão ora embargada, tendo-se explicitado como marco temporal o ‘encerramento da recuperação’ judicial, marco temporal que não se confunde com a longínqua data prevista para pagamento de todos os credores” (EDcl no REsp 1.906.680/RS).

 

Outro recurso que aborda este tema é o REsp 1.655.705/SP, que estava incluído na pauta de julgamento da Segunda Seção em 16/09/2021, mas foi retirado por indicação do Min. Relator Ricardo Villas Bôas Cueva. Atualmente, aguarda-se análise colegiada sobre a matéria.

 

Ao final, o Dr. Renato Scardoa, que estava assistindo ao debate, indagou se o crédito do representante comercial também deve aguardar o cumprimento do Plano. Sobre o tema, vale dizer que a Lei nº 14.195/21 alterou o art. 44 da Lei nº 4.886/65, passando a vigorar com a seguinte redação:

 

Art. 44. No caso de falência ou de recuperação judicial do representado, as importâncias por ele devidas ao representante comercial, relacionadas com a representação, inclusive comissões vencidas e vincendas, indenização e aviso prévio, e qualquer outra verba devida ao representante oriunda da relação estabelecida com base nesta Lei, serão consideradas créditos da mesma natureza dos créditos trabalhistas para fins de inclusão no pedido de falência ou plano de recuperação judicial.

 

Parágrafo único. Os créditos devidos ao representante comercial reconhecidos em título executivo judicial transitado em julgado após o deferimento do processamento da recuperação judicial, e a sua respectiva execução, inclusive quanto aos honorários advocatícios, não se sujeitarão à recuperação judicial, aos seus efeitos e à competência do juízo da recuperação, ainda que existentes na data do pedido, e prescreverá em 5 (cinco) anos a ação do representante comercial para pleitear a retribuição que lhe é devida e os demais direitos garantidos por esta Lei.

 

Segundo o Prof. Márcio, há duas possibilidades de interpretar o dispositivo supracitado:

 

  1. Entender que foi criado mais um crédito não submetido à Recuperação Judicial, isto é, aquele cuja sentença foi proferida após o ajuizamento do pedido de Recuperação Judicial, mesmo que o fato gerador seja anterior; e

 

  1. Entender que há violação à função social da empresa (LRF, art. 49), tratando-se, portanto, de um artigo inconstitucional.

 

Por sua vez, de acordo com a Dra. Renata, no segundo semestre de 2020, em discussão sobre competência de demanda envolvendo representação comercial, o STF fixou a tese de que compete à justiça comum o julgamento dessas relações. Com isso, a Lei nº 14.195/21 traz confusão ao qualificar esse crédito como trabalhista. Ou seja, tal Lei viola a LRF, o Repetitivo 1.051 do STJ e provavelmente viola também o entendimento do STF.

 

Por derradeiro, os debatedores fizeram suas considerações finais, convergindo na expectativa de que, quando da análise do tema pela Segunda Seção no julgamento do REsp 1.655.705/SP, será modificado o entendimento atual firmado pelo RESP 1.851.692/RS ora em discussão.

 

 

Autor(a)
Hayna Bittencourt, Sócia Bumachar Advogados
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