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GARANTIA FIDUCIÁRIA: LIMITES DA RENÚNCIA E CONSEQUÊNCIAS DELIBERATIVAS NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

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07 de outubro de 2025

Mônica Franco Lima[1]

Danielly Santos de Araujo[2]

1. INTRODUÇÃO

A alienação fiduciária é, há muitos anos, fonte de intensos debates doutrinários e jurisprudenciais. Não obstante a vasta produção acadêmica e a reiterada análise pelos tribunais, subsistem controvérsias que permanecem sem solução uniforme, especialmente em razão de sua peculiar interação com o regime da recuperação judicial.

Isso porque, ainda que, em regra, os credores fiduciários não se sujeitem aos efeitos do procedimento recuperacional, acabam inevitavelmente impactados pelo deferimento do processamento da recuperação judicial, circunstância que gera entraves interpretativos e práticos de grande relevância.

É nesse cenário que se insere a presente análise, voltada a examinar duas nuances relevantes atinentes à renúncia da garantia fiduciária pelo credor proprietário no contexto de recuperações judiciais.

A primeira diz respeito à intrincada dificuldade de se aferir a ocorrência de renúncia tácita, sobretudo em hipóteses de conduta processualmente contraditória por parte do credor.

A segunda se relaciona aos potenciais reflexos decorrentes da renúncia da garantia fiduciária de crédito de quantia relevante, circunstância que pode culminar em posição de vantagem do credor que, por opção legislativa,  não se sujeitaria ao  processo de recuperação judicial.

2. GARANTIA FIDUCIÁRIA NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Tem-se expressamente assegurado no comando legal do art. 49, § 3º, da Lei no 11.101/2005 que "prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais", afastando por completo não apenas o bem, mas o próprio contrato por ele garantido, dos efeitos da recuperação judicial. A alienação fiduciária se diferencia, assim, das garantias reais convencionais como o penhor e a hipoteca, que recaem sobre o valor econômico do bem dado em garantia, e não sobre a titularidade do bem em si.

Trata-se de exceção que confere tratamento diferenciado a determinados créditos, normalmente titularizados por instituições financeiras, afastando-os dos efeitos da recuperação judicial. O fundamento para a não sujeição seria a redução do custo do crédito bancário, embora não se tenha conhecimento de estudos mais sólidos acerca do tema.

Apesar de expressamente excluídos, tais credores estão inevitavelmente afetados pelos efeitos decorrentes do processamento da recuperação judicial, em razão da impossibilidade de retirada de bens essenciais da posse do devedor durante o período de blindagem.

Também se sabe que, em razão dos privilégios conferidos a tais créditos, tem-se observado intensa controvérsia em sede de recuperação judicial, sendo reiteradas as ocasiões em que o STJ foi instado a se manifestar sobre o tema. Dentre esses debates, destaca-se a discussão acerca da possibilidade de caracterização de renúncia tácita à garantia fiduciária, em razão de determinada conduta processual adotada pelo credor.

O debate ganhou contornos mais definidos com a análise de recursos que defendiam a tese de que o ajuizamento da ação de execução, por si só, configuraria renúncia tácita à garantia fiduciária. Tal discussão trouxe relevante diretriz interpretativa estabelecida pela Corte: de que a renúncia há de ser expressa; não se presume, conforme regra do art. 114 do Código Civil[3], sendo que, para o reconhecimento da renúncia tácita seria indispensável a demonstração, de forma objetiva, do ato do titular do direito equivalente à desistência de sua posição jurídica[4].

No julgamento do Agravo de Instrumento nº 2007370-30.2022.8.26.0000, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que a penhora pleiteada sobre bem diverso daquele dado em garantia configura renúncia à execução da garantia fiduciária, com esteio no § 1º do 1.436 do Código Civil[5]. Contudo, a questão central que poderia conduzir a interpretação diversa residiu no fato de o banco credor ter comparecido espontaneamente aos autos para anuir às condições do plano homologado em recuperação judicial anterior.

No caso em exame, a recuperanda sustenta que, em razão da renúncia da garantia fiduciária e da adesão do credor aos termos do plano de recuperação anteriormente aprovado, circunstância corroborada pelo recebimento de 48 parcelas já adimplidas, o crédito em questão teria perdido a natureza extraconcursal. Nessa linha, argumenta que referido crédito deve ser necessariamente incluído no quadro-geral de credores, uma vez que a aceitação do pagamento na forma estipulada no primeiro plano configuraria ato incompatível com a manutenção da garantia fiduciária originalmente pactuada.

Na ocasião, o Tribunal Paulista consignou que o credor tinha como opções para buscar a satisfação de seu crédito a execução da garantia, por exemplo, por meio do ajuizamento de ação de busca e apreensão ou a distribuição de ação executiva. No entanto, tendo optado pela segunda via, entendeu-se configurada a renúncia à garantia fiduciária contratada, o que afastaria a natureza extraconcursal do crédito e, consequentemente, imporia sua inclusão na classe dos credores quirografários.

O tema foi levado ao Superior Tribunal de Justiça por meio do Agravo em Recurso Especial nº 2551270/SP, no qual, em decisão monocrática, o Ministro Relator Raul Araújo[6] reformou o acórdão de origem por entender que, no caso concreto, não se verificaria excepcionalidade que permitisse a presunção de renúncia à garantia, haja vista que o pedido de penhora de bens se trata de medida meramente processual para obtenção do crédito. Em outras palavras: quem busca pelo crédito em ação executiva demonstra, pel o contrário, sua vontade inequívoca em recebê-lo, o que não é compatível com a intenção de se renunciar a elemento que poderá ainda vir a ser útil na busca de tal objetivo e que foi objeto de garantia quando da celebração do negócio jurídico.

O entendimento ganhou reforço no julgamento do agravo interno interposto, oportunidade em que a Quarta Turma consignou que a penhora de bens não extingue a alienação fiduciária em garantia, pois o bem alienado fiduciariamente continua a ser de propriedade do credor fiduciário. Somente com a efetiva satisfação do crédito, mesmo que a partir de outros bens, é que se teria a resolução da propriedade fiduciária, devolvendo-se o domínio sobre o bem alienado ao patrimônio do devedor.

A lógica adotada pelo julgado mencionado, sem adentrar no mérito de sua correção, diverge, em certa medida, da lógica própria da garantia fiduciária que, ao contrário de outras garantias, vincula diretamente o bem dado à obrigação garantida[7]. Nesse contexto, parte significativa da doutrina sustenta que, permitir que o credor fiduciário tenha acesso a todo o acervo patrimonial do devedor implicaria uma espécie de “dupla garantia”: de um lado, o bem vinculado à obrigação que pode ou não ser suficiente para saldar a dívida; de outro, simultaneamente, todo o patrimônio do devedor[8].

O que se nota é que a alienação fiduciária em contexto de recuperação judicial ainda é tema bastante espinhoso. A jurisprudência, embora tenha se consolidado no sentido de afirmar a imprescindibilidade de renúncia expressa, ainda se mostra vacilante ao enfrentar situações em que a conduta processual do credor pode ser interpretada como incompatível com a manutenção da garantia.

3. VOTO NA ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES E POTENCIAL DILUIÇÃO

O segundo ponto de controvérsia a respeito da renúncia da garantia fiduciária diz respeito à potencial diluição de voto dos credores em Assembleia Geral de Credores, órgão deliberativo para a tomada de decisões acerca do plano de recuperação judicial.

Com efeito, a lista de credores vigente na data da assembleia – geralmente aquela apresentada pelo Administrador Judicial (LREF, § 2º do art. 7º) – é considerada, para fins de quórum e votação, com as alterações e inclusões determinadas por decisões proferidas em habilitações ou impugnações de crédito. Todavia, o art. 39, § 1º da LRF dispõe expressamente que não terão direito a voto os credores titulares de créditos extraconcursais.

Assim, em um cenário hipotético, havendo renúncia à garantia pelo credor fiduciário, seja de forma expressa ou excepcionalmente tácita, o crédito é atraído para a recuperação judicial, deixando se ser extraconcursal e, por conseguinte, autorizando sua participação ativa nas deliberações da AGC. Nesse ponto é que reside a crítica, na medida em que, a depender do valor do crédito, estar-se-ia conferindo maior poder de barganha ao credor em relação às questões relativas ao plano de recuperação judicial, credor que, inicialmente, estaria alheio ao procedimento.

Nesse caso, não se verificam maiores divergências ao fato de que, renunciando à garantia fiduciária, o crédito seria incluído na classe quirografária[9]. Ocorre que, ao se examinar a questão de maneira mais detida, percebe-se que tal inclusão pode ensejar relevante assimetria, na medida em que a estruturação das classes de credores repousa justamente em um critério de afinidade quanto à natureza jurídica de cada crédito. Desse modo, o credor proprietário/fiduciário que, expressa e deliberadamente, abdica de sua garantia, passa a se equiparar voluntariamente aos credores quirografários que jamais dispuseram dessa faculdade.

Tal reclassificação não se limita a conferir ao credor o simples direito de voto em assembleia, mas pode igualmente ensejar a diluição da influência dos demais credores, na medida em que lhe atribui potencial posição de vantagem no processo deliberativo, considerando o eventual expressivo valor de seu crédito. Em determinadas hipóteses, essa condição pode se revelar decisiva para a definição dos rumos da recuperação judicial, o que pode ser objeto de questionamento judicial por outros credores, haja vista a dificuldade em se acomodar a multiplicidade de interesses envolvidos.

Nesse cenário, quando o crédito titularizado pelo antigo credor fiduciário for substancial, capaz de diluir o poder de voto dos demais credores da mesma classe, mostra-se adequado que a votação em AGC ocorra em cenários distintos, prática já usualmente adotada sob a denominação de “voto em apartado”, de modo que se possa avaliar o grau de interferência do voto no resultado da deliberação.

A abusividade pode surgir tanto na aprovação quanto na rejeição do plano de recuperação judicial. Embora a jurisprudência costume enfatizar o abuso no voto contrário, é plenamente possível sua configuração também em votos favoráveis, sobretudo quando se comprova que a manifestação de vontade não visou à satisfação legítima e proporcional do crédito, mas sim a interesses estranhos à função econômica do voto.

Nessas situações, compete aos sujeitos processuais – devedor, credores, administrador judicial, Ministério Público e Juízo –, a análise das peculiaridades do caso concreto, avaliando a existência de abusividade no voto do credor, na forma do § 6º do art. 39 da LREF, à luz da análise das condições de pagamento oferecidas aos demais credores em assembleia.

4. CONCLUSÃO

As reflexões desenvolvidas ao longo deste breve artigo evidenciam que a alienação fiduciária em contexto de recuperação judicial ainda permanece como questão controvertida. Se, por um lado, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou a exigência de renúncia expressa à garantia fiduciária, afastando a presunção de renúncia tácita, por outro, ainda há situações práticas em que a conduta processual do credor reabre espaço para interpretações divergentes.

De igual modo, a eventual renúncia à garantia fiduciária, ao atrair o crédito para o regime concursal, desencadeia efeitos relevantes na dinâmica deliberativa da assembleia geral de credores, principalmente aquela que delibera sobre o plano de recuperação judicial. Nesse cenário, sobretudo quando o crédito ostenta valor expressivo, surge a possibilidade concreta de diluição da influência dos demais credores, com potenciais distorções na formação da vontade coletiva, o que justifica a adoção de instrumentos como o voto em apartado e a fiscalização atenta do abuso de direito previsto no § 6º do art. 39 da LREF.

Ainda, percebe-se que a justificativa para exclusão do crédito decorrente de alienação fiduciária, na maioria das vezes, está ligada a quase uma lei universal segundo a qual tal medida seria imprescindível para não encarecer o crédito. Entretanto, tal premissa merece ser revisitada, pois tanto os credores concursais quanto os credores extraconcursais compartilham um mesmo denominador comum: a satisfação do crédito, objetivo que poderia e deveria ser perseguido no âmbito de um processo coletivo.

Esse mesmo raciocínio, aliás, já tem aplicação prática quando se admite que o credor fiduciário, em determinadas circunstâncias, direcione sua pretensão executiva contra o patrimônio geral do devedor, e não exclusivamente sobre o bem objeto da garantia, revelando a fragilidade da premissa que embasa sua exclusão do regime recuperacional e que pode abrir espaços para discussões e estudos mais aprofundados acerca da efetividade da manutenção de tais créditos como não sujeitos ao concurso de credores.

Sob essa ótica, a preservação da empresa – princípio basilar da LREF – poderia servir de vetor interpretativo para repensar o tratamento conferido aos créditos garantidos por alienação fiduciária. Ao contrário do que sugere a leitura tradicional, a sujeição desses créditos ao procedimento concursal não necessariamente implicaria em aumento do custo do crédito de forma indiscriminada, mas poderia, em determinados contextos, reforçar a previsibilidade e a estabilidade das relações negociais, reduzindo externalidades negativas que hoje recaem sobre credores desprovidos de garantias reais.

Ademais, uma abordagem mais integrativa do crédito fiduciário à recuperação judicial abriria espaço para o aperfeiçoamento do equilíbrio entre os interesses dos diversos stakeholders envolvidos. O redimensionamento das garantias, dentro de critérios objetivos e com adequada fiscalização judicial, teria o condão de fortalecer a função social da empresa em crise e asseguraria maior isonomia no tratamento entre credores, sem descurar da segurança jurídica e de eventual proteção que deve reger os negócios/garantias fiduciários(as).

Assim, a discussão não se limita à estrita técnica processual, mas projeta reflexos significativos no desenho da política de crédito e na própria efetividade do instituto da recuperação judicial.


[1] Advogada na AJ1 Administração Judicial. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP.

[2] Advogada na PG Law. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP.

[3] CC. Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.

[4] STJ. AgInt nos EDcl no AREsp 2076539/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª T., j.  13/02/2023.

[5] TJSP. AgIn nº 2007370-30.2022.8.26.0000, Rel. Azuma Nishi, 1ª CRDE, j. 22/03/2023.

[6] STJ. Ag em REsp nº 2551270/SP, Rel. Min. Raul Araújo, 4ª T., j. 31/12/2024.

[7] Neste sentido: “Alegação de que seu crédito é extraconcursal e não se submete aos efeitos da recuperação judicial, porque garantido por bem móvel em alienação fiduciária- Hipótese, porém, em que acredora não pretende a restituição da garantia, com a consolidação da propriedade em suas mãos, buscando, tão somente, a satisfação de crédito mediante constrição do patrimônio da empresa devedora. Desvirtuamento da finalidade do artigo 49, § 3º da Lei” (TJSP. AgIn nº 2050578-11.2015.8.26.0000, Rel. Luis Fernando Nishi, 32ª CRDE, j. 28/05/2015).

[8] WAISBERG, Ivo. Garantias e recuperação judicial: alguns aspectos, in: Temas do direito da insolvência: estudos em homenagem ao Professor Manoel Justino Bezerra Filho. 1. ed., São Paulo: IASP, 2017, p. 491.

[9] TJSP. AgIn nº 2229854-84.2024.8.26.0000, Rel. Paulo Alcides, 21ª CRDP, j. 04/11/2024.

Informações do autor
Mônica Franco Lima
Advogada na AJ1 Administração Judicial. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP.

Danielly Santos de Araujo
Advogada na PG Law. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP.

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