
Cybelle Guedes Campos[1]
Caroline Fortes Lacerda[2]
INTRODUÇÃO
Em um cenário econômico de crise e insegurança, a escolha pela recuperação judicial ou extrajudicial por aquele devedor que conta com um endividamento expressivo tem sido cada vez mais recorrente, na medida em que tais instrumentos oportunizam ao devedor um ambiente de negociação entre ele e seus credores, possibilitando a equalização do passivo e a manutenção da atividade empresarial.
O art. 50 da Lei 11.101/2005[3] prevê que, entre outros, constituem meios de recuperação judicial a concessão de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações vencidas ou vincendas[4].
Em 19/03/2024 foi apresentado o PL 874/2024[5] (“Projeto”), com o intuito de incluir no art. 50 da Lei 11.101/05, como meio adicional de recuperação judicial, a concessão de prazos e condições específicas, inclusive com descontos, para credores que não informarem seus dados bancários para recebimento de seus créditos no prazo de um mês contado da homologação do plano de recuperação judicial:
“Art. 1º Esta Lei altera o art. 50 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, para incluir, entre os meios de recuperação judicial, a concessão de prazos e condições específicas para o pagamento de obrigações vencidas ou vincendas de credores que não informarem seus respectivos dados bancários para recebimento dos seus créditos no prazo de um mês, contado da homologação do plano de recuperação judicial.
Art. 2º O art. 50 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, passa a vigorar acrescido de um parágrafo 6º, com a seguinte redação:
‘Art. 50. .................................................................
‘§ 6º O disposto no inciso I do caput deste artigo compreende a concessão de prazos e condições específicas, inclusive com descontos, para o pagamento de obrigações vencidas ou vincendas de credores que, no prazo de um mês, contado homologação do plano de recuperação judicial, não informarem seus respectivos dados bancários para recebimento de seus créditos. (NR)’”.
Nas razões de exposição do texto original do Projeto, foi esclarecido, de modo geral, que o objetivo da proposta era permitir que o plano de recuperação judicial dispensasse tratamento diferenciado a credores que não informassem tempestivamente seus dados bancários para recebimento de pagamentos, a fim de evitar que os recursos que seriam destinados a tal credor ficassem travados no caixa da empresa em recuperação judicial, que deveria poder utilizá-lo para reinvestimento na operação.
Como justificativa do Projeto, foi destacada recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) no julgamento do RESP 1.974.259, de relatoria do Ministro Antonio Carlos Ferreira, no qual a Corte Superior considerou válida previsão de plano de recuperação judicial que estabelecia desconto de 90% (noventa por cento) a credores que não fornecessem seus dados bancários tempestivamente. De acordo com a referida decisão, a inércia de determinados credores não deveria prejudicar a reestruturação da empresa em crise, tampouco o pagamento dos demais credores.[6]
O Projeto foi recebido pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e Comissão de Indústria, Comércio e Serviços e, nessa última, com a designação do relator Deputado Julio Lopes, que em 22/08/2024 apresentou proposta modificativa[7], discutida e aprovada em 12/11/2024 em reunião deliberativa (“Projeto Modificado”).
Atualmente aguarda-se a apreciação pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, que passará à análise da constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa do Projeto Modificado, sendo que, se aprovado e conclusivo, será encaminhado ao Senado Federal.
ALTERAÇÕES PROPOSTAS
Quando da apresentação do relatório pela Comissão da Indústria, Comércio e Serviços, o Deputado Julio Lopes, embora tenha registrado que o Projeto trata de questão importante, discordou da possibilidade de se estabelecer condições específicas de pagamento a credores que não indicassem dados bancários tempestivamente. De acordo com o deputado, esse fato não acarretaria prejuízo às empresas em recuperação judicial. Além disso, consignou o relator que o plano de recuperação judicial precisa prever condições de pagamento equânimes aos credores que se encontrarem em situações idênticas, uma vez que a liberdade negocial não deve se sobrepor à isonomia.
Diante de tais considerações, foi apresentada emenda ao Projeto, pela qual se propôs: 1. a alteração do art. 50 da Lei 11.101/05, com a inclusão do § 6º, a fim de vedar, no plano de recuperação judicial, a estipulação de condições diferenciadas ou de descontos em decorrência de eventual indisponibilidade de informações sobre dados bancários e 2. a alteração do art. 54 da Lei 11.101/05, com a inclusão do § 3º, com a finalidade de estabelecer que, na hipótese de haver, na data em que o pagamento a credores puder ser realizado, indisponibilidade de dados bancários em decorrência da falta de prestação dessa informação pela parte interessada, o administrador judicial deverá, de imediato, providenciar tentativa de pagamento por meio de PIX para o número de CPF ou CNPJ do credor, devendo ser conferida a titularidade da conta de destino; e, quando o PIX não for possível, deverá ser providenciada a publicação de edital que relacione os credores cujos dados bancários estiverem indisponíveis, requerendo sua apresentação.
Abaixo, as alterações propostas no Projeto Modificado:
“Art. 1º Esta Lei estabelece procedimentos a serem observados para a realização de pagamentos nas hipóteses em que os dados bancários do credor não estejam disponíveis à empresa em recuperação judicial em decorrência de falta de prestação dessa informação.
Art. 2º A Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, passa a vigorar com as seguintes alterações:
‘Art. 50. .................................................................
§ 6º É vedada, no plano de recuperação, a estipulação de condições diferenciadas ou de descontos em decorrência de eventual indisponibilidade de informações sobre dados bancários para realização de pagamentos.” (NR)
‘Art. 54. .................................................................
§ 3º Na hipótese de haver, na data em que o pagamento a credores puder ser realizado, indisponibilidade de dados bancários em decorrência da falta de prestação dessa informação pela parte interessada, o administrador judicial imediatamente providenciará:
I - tentativa de pagamento aos credores cujos dados bancários estejam indisponíveis através do meio de pagamento PIX, utilizando como chave PIX o número do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) ou do Cadastro de Pessoa Física (CPF) dos respectivos credores, devendo ser conferida a titularidade da conta de destino do pagamento; e
II - na hipótese de restar infrutífera a tentativa de pagamento na forma de que trata o inciso I deste artigo, a publicação de edital que relacione os credores cujos dados bancários estejam indisponíveis e que requeira a apresentação dos respectivos dados.’ (NR)”.
Analisando as proposições do Projeto Modificado, há que se ponderar que as condições de pagamento dispostas no plano de recuperação judicial devem ser elaboradas em observância ao caixa do devedor e considerando um fluxo de pagamento que não o onere demasiadamente, de modo que, além do cumprimento das suas obrigações, também seja possível o adimplemento dos seus compromissos diários.
Além disso, àqueles que em algum momento tiveram contato com a legislação falimentar, é sabido que a assembleia geral de credores é soberana em suas decisões e que, quando da homologação do plano de recuperação judicial, os juízes devem se ater apenas ao controle de legalidade do plano. Isso é, as cláusulas a serem eventualmente invalidadas pelos juízes são aquelas que forem contrárias aos dispositivos da legislação recuperacional, não podendo o poder judiciário proceder à análise das questões econômicas do plano.
Em outras palavras, com relação às cláusulas inseridas no plano que estiverem em acordo com a legislação, prevalece a vontade dos credores, formada em assembleia geral, que, por sua vez, é soberana.
Assim, a previsão de condições específicas para o pagamento de créditos daqueles credores que não fornecerem seus dados bancários tempestivamente não deveria ser óbice à homologação do plano, tampouco ensejar a declaração de nulidade de tais cláusulas quando do controle da legalidade.
Contudo, em caso análogo, em que o plano previu essas condições diferenciadas de pagamento a credores que não forneceram dados bancários tempestivamente, a cláusula foi considerada nula pelo juízo primevo, decisão esta que foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[8].
No caso, o juiz de primeiro grau assentou que não há razoabilidade em impor o deságio adicional a tais credores, como se a falta de informação dos dados bancários acarretasse alguma forma de sanção. De acordo com a decisão, o credor que demora a informar os dados bancários já deixaria de receber seu pagamento no prazo consignado no plano, não cabendo a imposição de sanção adicional[9].
A decisão, porém, foi reformada em sede de recurso especial, sendo a referida cláusula reconhecida como válida pelo STJ, que concluiu que a previsão de deságio adicional a credores que não fornecerem dados bancários no prazo estipulado “(...) está inserida no âmbito da liberdade negocial inerente à natureza jurídica do plano homologado, inexistindo ilegalidade apta a justificar a intervenção do Poder Judiciário.”[10]
A nosso ver, a autorização de previsão, no plano, de condições específicas de pagamento para credores que faltarem com a indicação dos dados bancários tempestivamente (como previa o Projeto em sua versão original), talvez não sirva como incentivo à prestação de tais informações.
Isso porque há grande número de credores leigos e hipossuficientes, principalmente nas classes I e IV, que não enxergam a necessidade de acompanhamento do processo, seja por advogado ou de forma independente.
Sob o ponto de vista das empresas devedoras, a ausência de dados bancários inviabiliza a liquidação de créditos sujeitos, impactando de forma direta a contabilidade delas, e, especialmente, o relacionamento com instituições bancárias, na medida em que seu passivo não será diminuído, tendo de se aguardar o prazo prescricional para que tais pendências possam ser baixadas. Por essa ótica, a inclusão de cláusula que permita o deságio maior para credores que deixarem de fornecer dados bancários tempestivamente pode ser positiva, na medida em que resultaria na redução do passivo e do valor a ser mantido em caixa à disposição do credor.
Somado a isso, é comum que os juízos das recuperações judiciais não autorizem que sejam feitos depósitos judiciais dos créditos daqueles credores que não informaram dados bancários, sob a justificativa de que o grande volume de depósitos e, posteriormente, a expedição de mandados de levantamento tumultuariam o trabalho cartorário, atrasando demais providências que também dele dependam.
Quanto à proposta do Projeto Modificado, sob o ponto de vista prático, parece ser pouco eficaz, porquanto atribui ao Administrador Judicial uma função que não lhe condiz em um processo de recuperação judicial. Ainda que seja comum a prática de criações de chave pix pelo número do CPF/CNPJ, fazer um pagamento de crédito para a conta que for atribuída àquele credor por essa chave não significa dizer que o valor será, de fato, recebido por ele, na medida em que a conta bancária pode ter sido inutilizada sem que a chave tenha sido excluída.
Isso traria prejuízo tanto ao credor, que não receberia seu crédito, quanto à empresa devedora, tendo em vista que haveria margem para se discutir o pagamento incorreto e a necessidade de o crédito ser pago novamente.
Além disso, incumbir ao administrador judicial a obrigação de verificar se o CPF/CNPJ do credor está vinculado a alguma conta bancária e até mesmo de fazer o pagamento, é expressamente contrário à lei, já que não se trata de obrigação legal, principalmente quando se está diante de um ambiente de recuperação judicial, em que a administração da empresa permanece com os seus sócios.
CONCLUSÃO
É possível concluir que a previsão de inclusão do § 6º no art. 50 da Lei 11.101/2005, como propunha o texto original do Projeto traria um pequeno benefício contábil para a empresa devedora, mas talvez não atingisse o objetivo de incentivar uma mudança de postura dos credores e tornar o processo mais eficiente. A proposta também não desobrigaria a recuperanda de manter recursos em caixa para pagamento dos credores que não fornecerem dados bancários tempestivamente, ainda que em valor reduzido.
Lado outro, o Projeto Modificado, além de atribuir à administração judicial obrigações que não lhe foram impostas pela Lei 11.101/05 e que são inerentes ao cargo de administrador da sociedade, desvirtua a sistemática legal e pode gerar insegurança jurídica, na medida que possibilita que o crédito seja indevidamente pago, onerando ainda mais a empresa em recuperação judicial, que poderá ser obrigada a pagar o crédito em duplicidade.
Assim, parece mais prudente manter a legislação vigente, reforçando a importância da atuação ativa dos credores no processo e da autonomia da assembleia geral, sem impor novas obrigações que comprometam a efetividade e a segurança do procedimento recuperacional, respeitando os princípios da isonomia, da legalidade e da preservação da empresa.
[1] Cybelle Guedes Campos: Sócia e Advogada do Moraes Junior Advogados. Especialista em Reestruturação, em Recuperação Judicial e Falências pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade São Judas Tadeu (USJT). MBA em Administração Legal pela Escola Paulista de Direito (EPD). Especialista em Insolvência e Recuperação Judicial comparada com ênfase na Legislação Britânica no Corpus Christi College da Oxford University. Especialista em Recuperação Judicial e Direito comparado pela Universidade Tor Vergatá (Itália). Diretora Institucional do Centro de Mulheres na Reestruturação Empresarial (CMR). Head do Comitê Estratégico do IWIRC BRAZIL. Vice Coordenadora da Comissão de Insolvência e Ética do IBDEE.
[2] Caroline Fortes Lacerda. Advogada do Moraes Junior Advogados. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil e em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD). Graduada em direito pela Universidade São Judas Tadeu. Membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB de Taboão da Serra/SP,
[3] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11101.htm. Acesso em: 23 abr. 2025.
[4] “Art. 50. Constituem meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso, dentre outros: I – concessão de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações vencidas ou vincendas; (...)”.
[5] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2422067. Acesso em: 23 abr. 2025.
[6] (STJ - REsp: 1974259, Relator.: ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Publicação: 29/02/2024)
[7] Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=24…. Acesso em: 23 abr. 2025.
[8]TJ-SP - AI: 22935174620208260000 SP 2293517-46 .2020.8.26.0000, Relator.: Fortes Barbosa, Data de Julgamento: 22/03/2021, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 22/03/2021.
[9] Decisão proferida às fls. 3548/3551, nos autos da Recuperação Judicial n.º 1000963-59.2019.8.26.0152, em trâmite perante a 01ª Vara Cível do Foro da Comarca de Cotia/SP. “(...) Quanto à cláusula de deságio adicional de 90% previsto no item 8.5, de fato, não há razoabilidade em proceder a deságio adicional, como se a falta de informação de dados bancários acarretasse alguma forma de sanção. O credor que deixa de informar os dados corretos para pagamento já deixa de receber no prazo consignado no plano até a regularização ou pode receber por meio de depósito judicial, caso justificado motivo plausível, não cabendo todavia sanção alguma, ainda mais para praticamente zerar o crédito. (...)”
[10] STJ. Resp nº 1974259/SP (2021/0356230-2), julgado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, de Relatoria do Ministro Antonio Carlos Ferreira, Data de Publicação: 29/02/2024
Caroline Fortes Lacerda. Advogada do Moraes Junior Advogados. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil e em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD). Graduada em direito pela Universidade São Judas Tadeu. Membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB de Taboão da Serra/SP,