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BLINDAGEM SEM PRAZO? O STAY PERIOD ENTRE A EXCEPCIONALIDADE LEGAL E O RISCO DE ETERNIZAÇÃO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

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19 de dezembro de 2025 

Rafael Moreira Faria[1]

A suspensão das ações e execuções individuais contra o devedor em recuperação judicial, o tão conhecido stay period[2], sempre ocupou posição central na arquitetura do sistema recuperacional brasileiro. Desde a promulgação da Lei nº 11.101/2005 (LREF),[3] o instituto foi concebido como mecanismo funcional à organização do processo coletivo de enfrentamento da crise empresarial, e não como privilégio autônomo concedido à devedora.

Nos termos do § 4º do art. 6º da LREF,

na recuperação judicial, as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal.

Em linhas gerais, não há palavra ou termo dispensável na letra crua da Lei. O legislador, neste caso, justamente para impedir a desagregação do patrimônio e permitir que a crise seja tratada em ambiente coordenado, concede o período de blindagem como ferramenta negocial na balança, por vezes desigual entre credor e devedor.

A doutrina sempre ressaltou que essa suspensão não se destina apenas à proteção da empresa, mas, também e sobretudo, à tutela dos credores enquanto coletividade. Nesse sentido, é particularmente elucidativa a síntese formulada por Sheila Neder Cerezetti, ao destacar que o stay period:

(i) permite que tome forma processo coletivo para lidar com a crise identificada; (ii) serve para assegurar que os titulares de créditos possam ser tratados de forma equitativa, protegendo-os e evitando que iniciativas individuais afetem os bens da recuperanda; (iii) confere tranquilidade à devedora para avaliar as circunstâncias em que se encontra e para desenvolver estratégias adequadas de negociação com seus credores e de reestruturação do seu passivo e/ou da sua atividade; (iv) majora o poder de barganha atribuído à devedora em relação aos seus credores, ora impedidos de utilizar ações de cobrança ou execução para pressionar aquela ou promover o desmonte do seu estabelecimento; e, por fim, (v) facilita a manutenção das atividades da devedora viável durante o processo, não obstando a finalidade precípua da recuperação judicial[4].

A passagem é reveladora porque evidencia algo que, por vezes, se perde no discurso excessivamente centrado na preservação da empresa: a suspensão das execuções é instrumento de equilíbrio sistêmico. Ela protege a empresa viável, mas também preserva o interesse dos credores enquanto grupo, evitando corridas individuais e distorções alocativas que comprometeriam o resultado coletivo e, por si só, a própria recuperação judicial.

O problema surge quando esse instrumento, concebido como excepcional e temporário, passa a ser manejado de forma reiterada e expansiva. A experiência jurisprudencial anterior à reforma de 2020 é ilustrativa. Embora o § 4º do art. 6º da LREF já previsse que a suspensão “não excederá o prazo de 180 (cento e oitenta) dias”, consolidou-se, na prática, a compreensão de que o stay period poderia ser prorrogado sempre que a demora na negociação não fosse imputável à recuperanda.

A doutrina registrou com precisão esse movimento. Conforme observa Marcelo Sacramone:

A despeito da expressa disposição legal, a jurisprudência consolidou para prorrogar a suspensão sempre que a demora na negociação no plano de recuperação judicial não pudesse ser imputada à devedora. A prorrogação do stay period ocorria, nessas hipóteses, como um meio de preservar a empresa e assegurar que pudesse ser obtida a melhor solução comum aos credores, inviabilizando comportamentos oportunistas individuais, desde que, ressalta-se, a demora não pudesse ser imputada à própria recuperanda[5].

Ocorre que essa lógica, ainda que compreensível em determinados contextos, produziu efeitos colaterais relevantes. A prorrogação deixou de ser exceção e passou, em muitos casos, a ser tratada como extensão natural do procedimento, frequentemente dissociada de critérios objetivos e de uma avaliação rigorosa sobre seus impactos para os credores.

A reforma promovida pela Lei nº 14.112/2020[6] buscou enfrentar esse problema. Ao modificar o texto do § 4º ao art. 6º da LREF, o legislador foi claro ao admitir que “as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional”.

A mensagem normativa é inequívoca: o stay period possui limite temporal máximo de 360 dias e sua ampliação total exige justificativa qualificada.

Entretanto, os dados empíricos mais recentes revelam que a prática jurisdicional segue tensionando esses limites. O levantamento realizado em 2022[7] a partir da análise de 616 recuperações judiciais demonstra que em cerca de 40% dos processos houve pedido de prorrogação do stay period. Dentre esses requerimentos, aproximadamente 60% foram deferidos, o que evidencia uma taxa relevante de acolhimento judicial das extensões pleiteadas.

Os dados mostram, ainda, que 17% das recuperações com prorrogação tiveram duas extensões sucessivas, e que, em casos pontuais, houve três ou até quatro prorrogações, com suspensão das execuções por períodos superiores a um ano e, em algumas situações, superior a dois anos. A excepcionalidade, nesses contextos, perde densidade normativa e se aproxima perigosamente de uma regra informal.

Do ponto de vista do credor, os efeitos são evidentes. A suspensão prolongada transfere de forma assimétrica o risco da recuperação, impondo aos titulares de crédito uma espera indefinida, sem garantias proporcionais de avanço efetivo das negociações. Ainda que os dados indiquem maior taxa de aprovação de planos nos processos com prorrogação, essa constatação não pode ser lida de forma acrítica: a aprovação obtida à custa da compressão excessiva dos direitos do credor à busca da satisfação de seu crédito não necessariamente traduz maior eficiência do sistema, mas pode refletir simples exaustão negocial.

Nesse cenário, a advertência do Superior Tribunal de Justiça (STJ)[8], ainda que não deva ser o eixo central desta análise, permanece relevante porquanto a preservação da empresa não possui caráter absoluto, e não pode servir de fundamento para obstar indefinidamente a satisfação dos créditos. A blindagem que se perpetua sem critério deixa de ser mecanismo de reorganização e passa a operar como fator de desorganização do sistema.

O stay period cumpre papel essencial quando preserva o valor coletivo do instituto recuperacional. Torna-se, contudo, um desserviço a este quando banalizado, pois corrói a previsibilidade, enfraquece a confiança dos credores e incentiva estratégias defensivas que, no limite, podem encarecer o crédito e reduzir a disposição para negociar.

Não obstante essas advertências, é preciso reconhecer que a postura adotada na prática pelo STJ e pelos Tribunais de Justiça Estaduais, especialmente aqueles sem câmaras ou varas especializadas, tem sido, em grande medida, de tolerância à extensão do stay period para além do desenho normativo estrito. Ainda que o discurso decisório reafirme a excepcionalidade da medida e a inexistência de direito subjetivo à prorrogação, observa-se, com frequência, a convalidação de extensões sucessivas fundadas em argumentos amplos de preservação da empresa, complexidade das negociações ou necessidade de amadurecimento do consenso.

Esse movimento, embora compreensível sob a ótica pragmática da condução de processos complexos, acaba por produzir um efeito sistêmico relevante e por converter a exceção em prática recorrente, reforçando a percepção, por parte dos credores, de que o stay period tende a se alongar sempre que o processo recuperacional não atinge, no tempo esperado, o fim pretendido pelo devedor.

Reafirmar a excepcionalidade da prorrogação, valorizar o papel deliberativo da assembleia geral de credores e respeitar os limites temporais fixados pelo legislador não significa hostilidade à recuperação judicial. Ao contrário: é condição para que o instituto preserve sua legitimidade e continue a funcionar como verdadeiro instrumento de reorganização econômico-financeira, e não como moratória indefinida imposta unilateralmente aos credores.


[1] Especialista em Direito Empresarial, LL.M pela Fundação Getúlio Vargas. Especialista em Falência e Recuperação de Empresas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Especialista em Direito Internacional de Insolvência pela International Association of Restructuring, Insolvency & Bankruptcy Professionals - INSOL. Membro da Comissão Especial de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência da OAB/RJ. Advogado e Analista Internacional.

[2] O mecanismo da suspensão das execuções na recuperação judicial brasileira foi estruturado em consonância com experiências do direito comparado, especialmente o automatic stay do U.S. Bankruptcy Code, ainda que com contornos e limites próprios.

[3] BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 10 fev. 2005.

[4] CEREZETTI, Sheila Neder. Parecer jurídico no Agravo de Instrumento nº 2145603-12.2019.8.26.0000, fls. 3.238. TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial.

[5] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2021. p. 93.

[6] BRASIL. Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020. Altera a Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, para aprimorar a disciplina da recuperação judicial, da recuperação extrajudicial e da falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 24 dez. 2020.

[7] DANTAS, Rodrigo; NUNES, Marcelo Guedes; SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Recuperação judicial e falência: evidências empíricas. São Paulo: Foco, 2022.

[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência nº 168.000. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Segunda Seção. Julgado em 27 nov. 2019. Diário da Justiça eletrônico, Brasília, DF.

 

Autor(a)
Rafael Moreira Faria
Informações do autor
Especialista em Direito Empresarial, LL.M pela Fundação Getúlio Vargas. Especialista em Falência e Recuperação de Empresas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Especialista em Direito Internacional de Insolvência pela International Association of Restructuring, Insolvency & Bankruptcy Professionals - INSOL. Membro da Comissão Especial de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência da OAB/RJ. Advogado e Analista Internacional.

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