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HAIRCUT E SUA TRIBUTAÇÃO - UMA BREVE ANÁLISE DO ART. 50-A DA LEI 11.101/2005

Lupa, fonte Freepik

O artigo 50, I, da Lei 11.101/2005[1], Lei de Recuperação de Empresas e Falências, estipula como um dos meios de recuperação judicial a “concessão de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações vencidas ou vincendas”, denominados como "haircut" ou deságio.

Frequentemente utilizado nas propostas de pagamento contidas na grande maioria dos planos de recuperação judicial como meio de restruturação do passivo financeiro, o deságio é admitido pelo mencionado artigo 50, I, do Diploma Recuperacional e plenamente utilizado nas recuperações em curso conforme estudo realizado pelo Núcleo de Estudos de Processos de Insolvência - NEPI da PUCSP e da Associação Brasileira de Jurimetria - ABJ[2], desde que esteja devidamente indicado em sua proposta, apresente justificativa válida e atenda aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade.

Como todo desconto aplicado em qualquer passivo de uma empresa, o deságio previsto no plano recuperacional caracteriza-se em um verdadeiro proveito econômico para esta entidade e, como tal, acaba por ter sua contrapartida aumentando o resultado financeiro do período.

Não é por outro motivo que esse “ganho” patrimonial decorrente da diminuição/desconto/perdão parcial de um passivo é considerado renda tributável, situação reforçada, pela disposição trazida no artigo 50-A da Lei 11.101/2005, abaixo transcrito:

 

Art. 50-A. Nas hipóteses de renegociação de dívidas de pessoa jurídica no âmbito de processo de recuperação judicial, estejam as dívidas sujeitas ou não a esta, e do reconhecimento de seus efeitos nas demonstrações financeiras das sociedades, deverão ser observadas as seguintes disposições:

 

I - a receita obtida pelo devedor não será computada na apuração da base de cálculo da Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins);

II - o ganho obtido pelo devedor com a redução da dívida não se sujeitará ao limite percentual de que tratam os arts. 42 e 58 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995, na apuração do imposto sobre a renda e da CSLL; e  

III - as despesas correspondentes às obrigações assumidas no plano de recuperação judicial serão consideradas dedutíveis na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, desde que não tenham sido objeto de dedução anterior.

 

Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo não se aplica à hipótese de dívida com:

 

I - pessoa jurídica que seja controladora, controlada, coligada ou interligada; ou  

II - pessoa física que seja acionista controladora, sócia, titular ou administradora da pessoa jurídica devedora.

 

Vale dizer que, para respeitar a lógica que determina que o deságio impacte positivamente na base de cálculo do IRPJ e da CSLL, por coerência, o mesmo art. 50-A do Diploma Recuperacional acima citado, permite que das despesas correspondentes à homologação do plano de recuperação judicial, desde que não tenham sido objeto de dedução anterior, tais como os honorários do Administrador Judicial, por exemplo, possam ser deduzidas da base de cálculo desses mesmos tributos sobre resultado (IRPJ e CSLL).

Importante destacar que tal entendimento já vinha sendo aplicado pela Secretaria da Receita Federal, mesmo antes a edição da Lei n. 14.112/20 que incluiu o Art. 50-A na LRJ, como podemos ver da Solução de Consulta COSIT nº 21/2013[3], que já expunha essa ideia de que perdões de dívida, de uma forma geral, compreendem um lançamento contábil cuja baixa do passivo tem como contrapartida lançamento em resultado, caracterizando, portanto, fato gerador do imposto de renda, nos termos do art. 43, inciso II, e § 1º, do CTN.

A jurisprudência administrativa federal, também, sempre encampou essa ideia, mesmo antes da inclusão do artigo 50-A. A título de exemplo, podemos citar decisão do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) proferida em 2014:[4]:

 

PERDÃO DE JUROS DE MORA. NORMAS GERAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIO. A remissão de dívida importa para o devedor (remitido) acréscimo patrimonial (receita operacional diversa da receita financeira), por ser uma insubsistência do passivo, cujo fato imponível se concretiza no momento do ato remitente (CARF, Acórdão n° 1401-001.1142014, p. 1).

 

Ponto de extrema relevância é o fato de que que o artigo 50-A da Lei 11.101/2005[5] excepciona as regras neles contidas isentando a hipótese de dívida com a pessoa jurídica que seja controladora, controlada, coligada ou interligada com a Recuperanda; ou a pessoa física que seja sua acionista controladora, sócia, titular ou administradora.

Pois bem, fixada a ideia de que deságio em passivo é tratado como acréscimo patrimonial da devedora, um ponto que pode trazer alguma discussão e divergência diz respeito ao momento da tributação, em outras palavras, se o “ganho” obtido com o “haircut” deverá ser oferecido à tributação no momento da homologação do plano de recuperação judicial ou de acordo com a sua realização conforme o fluxo de pagamento.

Embora essa discussão possa ser nova para profissionais da área recuperacional, que navegam pelas regras do chamado Direito Privado, essa questão já foi objeto de inúmeras discussões nos mais diversos debates relacionados ao Direito Tributário, que, como sabemos, encontra-se albergado naquilo que chamamos de Direito Público.

O cerne desta questão diz respeito às disposições referentes ao imposto sobre a renda na Constituição Federal (Art. 153, III), bem como nos artigos 43, I, II, § 1º e § 2º, do Código Tributário Nacional – CTN. Da leitura dos dispositivos mencionados, fica claro que o fato gerador da tributação sobre a renda (e sobre o lucro) é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda

Sobre esse aspecto, vale dizer que as boas práticas contábeis evoluíram muito após a implementação no Brasil do chamado IFRS (“International Financial Reporting Standards”), trazido pela Lei 11.638/07, sendo que, hoje, é possível sustentar com robustez que o momento do reconhecimento do acréscimo patrimonial tributável ocorre quando dos pagamentos[6] realizados de acordo com o plano recuperacional

De qualquer forma, não é apenas essa discussão que exsurge dessa questão. Para os mais arrojados, poder-se-ia ainda discutir se foi a regra prevista no art. 50-A em estudo, introduzida pela Lei nº 14.112, de 2020 que trouxe a possibilidade dessa tributação, sendo, portanto, esta norma de natureza constitutiva e não meramente declaratória, que é como entende a Receita Federal.

Em uma remota hipótese de se entender que a tributação, pelo IRPJ e CSLL, só veio a ser inaugurada com a lei nº 14.112, de 2020, pelo respeito ao princípio da anterioridade e da anualidade, a tributação só poderia ocorrer a partir do primeiro dia do exercício seguinte, ou seja, apenas em relação a fatos geradores ocorridos após 1º de janeiro de 2021.

Um outro desdobramento que vem sendo explorado para aqueles que entendem que foi a Lei 14.112/20 que criou essa tributação é a discussão acerca de se poder, ou não, invocar alguma espécie de “direito adquirido” e, assim, não submeter à tributação o benefício econômico advindo do deságio durante os pagamentos no caso de planos de recuperação homologados anteriormente à edição da lei.

Respeitando as interpretações divergentes, nosso entendimento é de que esse posicionamento apresenta fragilidades conceituais, uma vez que o reconhecimento do benefício (que será tributado) no momento do pagamento pressupõe que é nesse momento a ocorrência do fato gerador, qual seja a disponibilidade jurídica e/ou econômica da renda e, assim, os fatos geradores posteriores ao início de vigência da Lei 14.112/20 não poderiam deixar de se submeter aos seus efeitos.

De qualquer forma, diante deste cenário, uma coisa certa: é que haverá divergências interpretativas quanto ao tema e, como sempre, caberá à jurisprudência solucionar a controvérsia.

Por fim, excetuando-se a discussão referente ao momento da tributação, permitindo-nos dizer que a questão acerca da incidência em si do IRPJ e CSLL ao valor descontado quase não teve discussão, tendo, portanto, o artigo 50-A não inovado a legislação, mas apenas declarado uma situação já existente, o mesmo não se pode falar da questão relacionada `incidência do PIS/COFINS sobre esses valores.

Em relação ao PIS/COFINS a discussão sempre foi fértil e argumentos existem para se defender a tributação e para se defender a não tributação.

Assim, diante dessa penumbra e com vistas a trazer maior segurança jurídica, o artigo 50-A da Lei de Recuperação de Empresas expressamente afasta a incidência de PIS/COFINS sobre a receita obtida com o deságio, para empresas apuradas no Lucro Real.

 

[1] Art. 50. Constituem meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso, dentre outros: I – concessão de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações vencidas ou vincendas;

[2] Tal assertiva é validada por estudo realizado pelo Observatório da Insolvência, iniciativa do Núcleo de Estudos de Processos de Insolvência - NEPI da PUCSP e da Associação Brasileira de Jurimetria – ABJ, Disponível em:  <<https://abjur.github.io/obsFase2/relatorio/obs_recuperacoes_abj.pdf>&gt; Acesso em: 25 março 2024.

[3] BRASIL. Receita Federal do Brasil. Coordenação-Geral de Tributação. Solução de consulta Cosit n° 21, de 06 de novembro de 2013. Imposto sobre a renda de pessoa jurídica – IRPJ. Brasília, DF, 22 nov. 2013, p. 8-9 Disponível em:   <<http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=4…;. Acesso em: 17 março 2024.

[4] CARF, Acórdão n° 1401-001.1142014, p. 1.

[5] Cf. artigo 50-A, parágrafo único, incisos I e II, da Lei 11.101/2005.

[6] É possível aplicar por analogia a regra trazida no item 72 do Pronunciamento Técnico CPC 47 do Comitê de Pronunciamentos Contábeis, que determina que “(...)a contraprestação a pagar ao cliente for contabilizada como redução do preço da transação, a entidade deve reconhecer a redução das receitas quando (ou à medida que) o último de qualquer dos eventos a seguir ocorrer: (b) quando a entidade pagar ou prometer pagar a contraprestação (ainda que o pagamento dependa de evento futuro). Essa promessa pode ser deduzida das práticas de negócios usuais da entidade”. Disponível em: <<https://www.cpc.org.br/CPC/Documentos-Emitidos/Pronunciamentos/Pronunci…; Acesso em: 25 março 2024.

Autor(a)
Luiz Gustavo Bacelar / Fernando Vaisman
Informações do autor
Luiz Gustavo Bacelar
Advogado. Sócio de Bacelar | Advogados. Mestre em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor do Insper SP. Coordenador do Comitê Editorial e Membro do Conselho Fiscal da TMA Brasil

Fernando Vaisman
Advogado, Palestrante e Professor do Insper SP. Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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