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Crédito tributário e recuperação judicial

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No início de maio, o Governo Federal enviou ao Congresso Nacional Projeto de Lei[1] no qual são propostas alterações na Lei n. 11.101/2005, que regula as recuperações judiciais e a falência. Os resultados esperados são de grandiosidade proporcional à urgência do aperfeiçoamento da sistemática recuperacional e falimentar: geração de mais empregos e renda e elevação da produtividade da economia.

Segundo a Exposição de Motivos da proposição, cinco são os vetores para as modificações: (a) preservação da empresa; (b) fomento ao crédito; (c) incentivo à aplicação produtiva dos recursos econômicos, ao empreendedorismo e ao rápido recomeço; (d) instituição de mecanismos legais que evitem um indesejável comportamento estratégico dos participantes da recuperação judicial/extrajudicial/falência que redundem em prejuízo social e dos credores; e (e) melhoria do arcabouço institucional com a supressão de procedimentos desnecessários, o uso intensivo dos meios eletrônicos de comunicação, profissionalização do administrador judicial e a especialização dos juízes de direito encarregados dos processos.

O intento é deveras louvável e, entre os comercialistas, é consensual a opinião quanto à necessidade de atualização do regramento previsto na Lei nº 11.101/2005.

Entre as inovações, uma das mais notáveis é o tratamento que recebe o crédito tributário, cujo teor normativo tem a composição atribuída majoritariamente ao Ministério da Fazenda e a seus órgãos vinculados da Receita Federal e da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional.

A carência, na legislação atualmente em vigor, de normatização específica sobre a matéria tributária, sempre foi apontada como um problema a ser enfrentado, tendo a jurisprudência exercido relevante papel no estabelecimento dos caminhos que Fazendas Públicas e contribuintes podem/devem trilhar, principalmente no que respeita à cobrança forçada do crédito tributário nas execuções fiscais. Numa época em que, somente a Fazenda Nacional, possui dois trilhões de reais acumulados em dívida ativa,[2] tem-se ideia do impacto das questões tributárias no âmbito das recuperações e das falências, onde as empresas invariavelmente acumulam passivos tributários milionários e, em alguns casos, bilionários.

Entretanto, na hipótese de aprovação do projeto nos termos em que inicialmente veiculado, o que se verá, na prática, é um iminente esvaziamento do instituto da recuperação judicial no Brasil, que terá toda sua principiologia de restabelecimento de empreendimentos econômicos – e, assim, de manutenção dos empregos e da fonte geradora de renda – desvirtuada por interesses fiscais unilaterais e manifestamente conflitivos.

Não se nega, por óbvio, a legitimidade e a importância da cobrança do crédito tributário, bem como da imprescindível adoção de mecanismos mais eficazes não só para o recebimento dos gravames pelo Poder Público, mas também para o combate aos expedientes fraudulentos que miram somente a sonegação. Nada obstante, tal legitimidade e relevância não subsistem à edição de regras que, no dia a dia, não permitirão a recuperação de qualquer empresa que deva ao Fisco. Restam desatendidos, pois, os “princípios norteadores” aos quais se vincula a proposição.

Um primeiro e mais imediato aspecto advém da nova redação do parágrafo 7º do art. 6º do Projeto. De acordo com o dispositivo, o ajuizamento da recuperação judicial não suspende o curso das execuções fiscais, as quais prosseguirão normalmente, permitida a penhora e a alienação de bens e direitos no juízo que as processa, hipótese em que não competirá ao juízo da recuperação judicial avaliá-las.

Trata-se de manifesta reação à jurisprudência formada nos Tribunais, inclusive no STJ, ao longo dos últimos anos, a qual, embora consinta com a não suspensão das execuções fiscais, pugna justamente pelo contrário, ao menos no que é essencial: obsta a realização de atos de expropriação de bens penhorados em execuções fiscais e determina a competência do juízo da recuperação para análise dessas questões. Mais: obsta a própria penhora de ativos financeiros das empresas em processo de recuperação.

Ora, os gravames patrimoniais – sejam eles diretamente financeiros, sejam em bens essenciais à atividade empresarial – mostram-se largamente danosos ao prosseguimento das operações e, fundamentalmente, ao cumprimento do plano de recuperação judicial perante o juízo que dele conheceu. Assim procedendo, resta prejudicada, se não inviabilizada por completo, a possibilidade de cumprimento do plano de recuperação, a manutenção dos empregos e o pagamento dos credores.

É imperioso que se admita ser de competência do juízo da recuperação, no mínimo, o conhecimento dos atos relativos à penhora e à alienação de bens, de modo a não retardar o cumprimento do plano de reorganização da empresa. É justamente a condução potencialmente errática das demandas judiciais que se quer evitar com a concentração da cadeia de atos tendentes à expropriação de bens da empresa, inclusive e fundamentalmente aqueles relativos à penhora.

Também em oposição aos reclamos de otimização do processo concursal vai a disposição do art. 7º-A do Projeto, que cria, na falência, um “incidente de classificação de crédito público” para cada Fazenda Pública credora. A temerosa sobreposição de fases, prazos e atos processuais, incidentais ou não, tende a procrastinar ainda mais a solução de eventuais conflitos, mormente quando envolvem tributos e claramente milita contra a “célere liquidação dos ativos da empresa ineficiente”.

Em meio a isso, em linha de compasso com o espírito da legislação recuperacional está a disposição do art. 50-A do Projeto, cujo texto veda a tributação a título de PIS e COFINS do ganho da pessoa jurídica decorrente de abatimento de dívida negociado com credores em processo, além de não sujeitar este mesmo ganho ao limite de 30% para apuração do lucro líquido para fins de Imposto de Renda e de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).

O art. 68 do Projeto refere a possibilidade de as Fazendas Públicas concederem parcelamentos dos créditos tributários para empresas em recuperação judicial, disposição que, frente ao CTN e à própria prática fazendária, mostra-se um tanto quanto inócua, devendo ser tomada como estímulo para a prática. Com esta finalidade, no que tange à Fazenda Nacional, são pretendidas novas alterações na Lei nº 10.522/2002, especialmente em seu já remendado art. 10-A. Basicamente, alargam-se os prazos (de 84 para 120 meses) e alteram-se os percentuais de quantificação do valor das parcelas, além de viabilizar o aproveitamento parcial de prejuízos fiscais.

Quanto à atratividade financeira, a mudança não é impactante, o que fica claro quando se impõe a obrigação de serem parcelados todos os débitos exigíveis em nome da empresa, ressalvadas reduzidas hipóteses de não indicação. Para a hipótese de exclusão do parcelamento (cujas causas não são poucas e vêm elencadas no § 8º do art. 10-A), é alarmante a disposição do inciso IV do § 9º do art. 10-A: a convolação automática da recuperação judicial em falência, se ainda estiver em curso, ou a faculdade de a Fazenda Nacional requerer a decretação da falência do sujeito passivo se a recuperação judicial não estiver mais em curso, nos termos estabelecidos na Lei nº 11.101/2005.

E duas novas obrigações são estabelecidas como condição para adesão: o fornecimento, à Receita Federal e à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, de informações bancárias, incluídas aquelas sobre extratos de fundos ou aplicações financeiras e sobre eventual comprometimento de recebíveis e demais ativos futuros; e o dever de amortizar o saldo devedor do parcelamento com percentual do produto de cada alienação de bens e direitos integrantes do ativo não circulante realizada durante o período de vigência do plano de recuperação judicial.

A propósito, seria de todo recomendável, e dentro da teleologia da sistemática empregada para a recuperação de empresas, que, perante aqueles casos de genuína necessidade de atribuição de fôlego para restabelecimento das atividades econômicas particulares, o Fisco assumisse uma posição menos combativa, conflitiva e suspeitosa, em prol do desenvolvimento de uma feição mais colaborativa, reforçando a responsabilidade das duas partes na exata apuração dos tributos em geral e quanto à consciência comercial que deve permear o processo de recuperação. Exemplo emblemático disso, aqui no Brasil, é o pioneiro e elogiável Programa de Estímulo à Conformidade Tributária (“Nos Conformes” – Lei Complementar nº 1.320/2018),[3] que define princípios para o relacionamento entre os contribuintes e o Estado de São Paulo e estabelece regras de conformidade tributária.

Outro conjunto de dispositivos que merece atenção é o dos arts. 69-J a 69-O do Projeto. Conquanto não se refiram diretamente ao crédito tributário, versam sobre a recuperação judicial sob “consolidação”, isto é, de grupos de empresas, seja de forma direta e intencional (“consolidação processual”), seja de forma indireta e – eis o surpreendente – de ofício pelo juiz do processo de recuperação (“consolidação substancial”).

As possíveis repercussões na cobrança de tributos são evidentes, marcadamente no que se refere à definição da sujeição passiva de terceiros que sejam tidas, de ofício, como pertencentes a grupos econômicos, hipótese que, registre-se, já se encontra disposta na legislação tributária (por exemplo, os arts. 124, I, e 128, do CTN) que, na qualidade de norma complementar (art. 146, III, CF/88), por excelência regula a matéria.

Na forma do Projeto, a “consolidação substancial” será decretada de ofício quando constatada confusão entre ativos ou passivos dos devedores ou envolvimento dos devedores em fraude que imponha consolidação substancial. Mais e quiçá pior: é textual que o enquadramento em qualquer dessas hipóteses implicará, para todos os fins, a desconsideração da personalidade jurídica dos agentes econômicos envolvidos e a apuração de responsabilidade criminal, ainda que se ressalve a “terceiros” não presentes na recuperação judicial sob consolidação processual a observância do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no CPC/2015, que igualmente pode ser instaurado de ofício pelo juiz.

De pronto, uma problemática: o reconhecimento da existência de grupo econômico, sob o pálio da legislação falimentar, será tomada também pelo Fisco como tal e, assim, implicará a responsabilização de terceiros, eventualmente não envolvidos com a empresa recuperanda ou falida, por débitos tributários desta? Ou a Administração Fazendária irá verificar a configuração dos requisitos presentes na legislação tributária? Conhecendo o atual estado da arte da atuação fiscal, pode-se imaginar a resposta.

Em linha de compasso com os receios daí advindos, o art. 94-A do Projeto nada mais faz do que sobrelevá-los. Faculta-se às Fazenda Públicas o requerimento da falência do devedor no período de recuperação judicial ou durante o período de vigência do plano. A par da vagueza de algumas situações elencadas permissivas do pedido (“utilização abusiva dos instrumentos previstos nesta Lei com a finalidade de limitar, falsear ou prejudicar de qualquer forma a livre concorrência ou a livre iniciativa”), outras são notória e infelizmente corriqueiras dentro de um estado de recuperação empresarial. Para se dizer o mínimo, banaliza-se o instituto da falência e instaura-se verdadeiro clima de tensão quanto à viabilidade, a procedibilidade e a utilidade mesma da recuperação judicial como instituto voltado ao reerguimento de sociedades empresárias em dificuldades.

Diante das considerações acima, e mesmo sabedores do premente e inafastável concurso de todos os cidadãos e empresas para o financiamento das despesas públicas através do recolhimento de tributos, percebe-se o impacto negativo que o Projeto de alteração da Lei nº 11.101/2005 terá nos processos de recuperação judicial e falimentar, ao menos se mantidos os termos em que enviados ao Poder Legislativo. Se o objetivo é “dar maior dinamismo ao sistema econômico permitindo aos empresários tentarem, por mais de uma vez, obter sucesso em seus empreendimentos” e conferir eficiência aos procedimentos liquidatórios falimentares, a gestão do crédito tributário e da dívida ativa pelas autoridades fazendárias pode, em verdade, impedir a consecução de tais desideratos. Esperamos, assim, que no âmbito dos trabalhos legislativos o tema seja amplamente debatido com todos os envolvidos, isto é, o segmento empresarial, representantes fazendários e a comunidade jurídica especializada. Somente assim será possível recuperar o meio recuperador.

02/06/2018

Autor(a)
Luiz Eduardo Abarno da Costa

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