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Dívida soberana na estaca zero

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A Argentina e suas autoridades monetárias foram impedidas de honrar os acordos de reestruturação de dívida feitos com os credores do país, a menos que os 7% dos credores que rejeitaram esses acordos sejam pagos integralmente - um juízo que deve persistir no futuro, agora que a Corte Suprema dos EUA o apoiou. Embora seja difícil lamentar a Argentina, a decisão a favor dos que ficaram de fora do acordo é má notícia para o sistema financeiro mundial e significa um retrocesso no processo de evolução do regime internacional de reestruturação de dívidas soberanas.

Por que é tão difícil sentir simpatia por um país em desenvolvimento que não consegue pagar suas dívidas? Para começar, em 2001 a Argentina deixou de pagar unilateralmente toda sua dívida de US$ 100 bilhões, uma medida incomum, em vez de negociar novas condições com seus credores. Quando, em 2005, o governo finalmente conseguiu negociar uma troca de dívidas, praticamente pôde ditar os termos - um corte de 70%.

Nos dez anos desde então, a presidente Cristina Fernández de Kirchner e seu antecessor e marido falecido, Néstor Kirchner, promoveram uma série de políticas econômicas espetacularmente ruins. A independência do banco central e da agência de estatísticas foram profundamente comprometidas, com Cristina forçando a adoção, por exemplo, de um índice de preços ao consumidor que subestima amplamente a inflação. Contratos foram quebrados e empresas estrangeiras, estatizadas. E quando os preços internacionais das principais commodities agrícolas argentinas trouxeram uma oportunidade de ouro para elevar tanto a produção quanto os ganhos em moeda estrangeira, cronicamente insuficientes, Cristina impôs pesadas tarifas e cotas sobre as exportações de soja, trigo e carne bovina.

O tempo vai se esgotar para a Argentina no fim de julho. De qualquer forma, os acordos voluntários futuros de renegociação de dívidas acabam de ficar mais difíceis de alcançar, o que vai deixar tanto devedores quanto credores em pior situação

Alguns podem contra-argumentar que os fundos hedge que ficaram de fora do acordo de renegociação e processaram a Argentina também não merecem simpatia. Muitos são chamados de "fundos abutre" porque compram dívidas com fortes descontos dos credores originais na esperança de lucrar com decisões judiciais.

Mas o problema com o caso da Argentina tem pouco a ver com as deficiências morais dos acusadores ou dos réus. O problema é o precedente que o caso cria para resolver futuras crises internacionais de dívidas.

A reação mais comum às recentes decisões é a favor dos que não quiseram renegociar a dívida. Afinal, o juiz está apenas fazendo valer o contrato legal dos bônus originais, certo? Como o presidente Calvin Coolidge supostamente disse a respeito dos créditos americanos aos aliados na Primeira Guerra Mundial: "Eles pegaram o dinheiro emprestado, não pegaram?".

Se ao menos o mundo fosse tão simples. Se ao menos houvesse um regime de cumprimento consistente de todos os termos explícitos dos contratos de créditos que fosse prático o suficiente para ser seguido. Há muito tempo, no entanto, já se reconhece a necessidade de procedimentos para reescrever os termos dos contratos de dívida sob circunstâncias extremas.

A lei britânica das Empresas de Capital Aberto de 1856, por exemplo, estabeleceu o princípio da responsabilidade limitada para empresas. A servidão contratual e a prisão para devedores também são ilegais desde o século XIX. E pessoas físicas e jurídicas podem declarar falência. Sempre haverá momentos em que é impossível para um devedor pagar.

Quanto à falência empresarial, admite-se como deficiente um sistema legal que mantenha fechadas fábricas, que de outra forma seriam viáveis, enquanto os ativos são fritados em dispendiosas disputas judiciais, deixando a todos - gerentes, trabalhadores e acionistas - em situação ainda pior. Um bom sistema legal permite a continuidade do emprego e da produção quando a atividade econômica ainda é viável; divide os ativos remanescentes de uma forma ordenada e, em geral, consensual; e realiza essas determinações da forma mais eficiente e rápida possível, enquanto desencoraja descuidos futuros, impondo custos aos gerentes, acionistas e - se necessário - credores.

Não existe esse corpo de leis e regulamentos na esfera internacional. Alguns acreditam que esse vácuo é a principal dificuldade do sistema de dívidas internacionais. Propostas ambiciosas para revisá-lo, como o Mecanismo de Reestruturação de Dívidas Soberanas (MRDS), no Fundo Monetário Internacional (FMI), sempre se depararam com obstáculos políticos.

Pequenos passos, no entanto, vêm lentamente fazendo o sistema avançar na direção correta, desde os anos 80. Na crise internacional da dívida, iniciada em 1982, os programas de ajuste de países do FMI andaram de mãos dadas com os bancos credores que ajudaram nos socorros, por meio de rolagens coordenadas "voluntárias" dos créditos. No fim das contas, reconheceu-se que o excesso de dívidas inibia o investimento e o crescimento na América Latina, em detrimento tanto de devedores quanto credores.

Os programas subsequentes para lidar com crises de países emergentes apresentaram uma combinação análoga de ajuste do país e de "envolvimento do setor privado". Trocas voluntárias de dívidas funcionaram, em termos gerais, com os investidores aceitando cortes.

Depois do calote unilateral da Argentina em 2001, muitos investidores viram mais claramente a necessidade de permitir explicitamente alternativas menos drásticas antes do tempo e, portanto, incorporaram as chamadas "cláusulas de ações coletivas" (CACs) nos contratos de dívidas. Se o captador tiver problemas, os CACs permitem reestruturar a dívida com a concordância de uma maioria substancial dos credores (normalmente em torno a 70%). A minoria, então, também precisa somar-se.

Esses passos graduais criaram um sistema flexível de reestruturação das dívidas. Certamente, ainda há muitas deficiências. A reestruturação em geral chega tarde demais e traz pouco alívio para a sustentabilidade da dívida. Mas funcionou, em maior ou menor medida. Em contraste, a indulgência ao instinto provinciano de validar contratos escritos exibida nas decisões da corte dos EUA vai minar a possibilidade de reestruturações em futuras crises de dívidas.

O tempo vai se esgotar para a Argentina no fim de julho. Incapaz de pagar todas suas dívidas, talvez seja forçada a deixar de pagá-las integralmente. O cenário mais provável é que consiga encontrar algum ajuste, com termos mais atraentes para os que ficaram de fora da renegociação da dívida do que os aceitos pelos outros credores. De qualquer forma, os acordos voluntários futuros de renegociação de dívidas acabam de ficar mais difíceis de alcançar, o que vai deixar tanto devedores quanto credores em pior situação. (Tradução de Sabino Ahumada).

Jeffrey Frankel é professor de crescimento e formação de capital na Harvard University. Copyright: Project Syndicate, 2014.

Autor(a)
Jeffrey Frankel

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